Comentário sobre o

Processo de

O processo de Inventário do Comendador Domingos Faustino Corrêa

Comendador Domingos Faustino Correa's Process

 

Virgilina E.Gularte S.Fidelis de Palma

 

O trabalho de pesquisa de Virgilina se iniciou em 2002, a partir de sua pós-graduação em História do Rio Grande do Sul, na Furg. Em julho, ela irá apresentar a pesquisa no 2º Congresso Nacional dos Arquivos do Poder Judiciário, na Capital. A apuração deve resultar em um livro.

 

Resumo

O processo que a autora estudou é um dos mais famosos, se não o mais famoso que tramitou em foros brasileiros. A análise dos mais de mil volumes, uma autêntica pesquisa arqueológica, foi a obra-prima da articulista, cuja realização exigiu muitos anos. O núcleo do trabalho é o exame minucioso dos testamentos do Comendador e de sua mulher, Leonor Maria Correa, pleno de cláusulas, complexas, fruto do capricho dos testadores. Lendo-se o artigo, compreender-se-á como um feito judicial normalmente simples findou mais de um século após ter início.

Palavras-chaves

Processo cível – inventário – Justiça – Rio Grande do Sul

Abstract

The process the author studied is one of the most famous, if not the most famous, in Brazil. The analysis of the more than one thousand tomes lasted a long time. The core of the work is the scrutiny of the wills of the Comendador and the one of his wife, Leonor Maria Correa, full of intricate and whimsical clauses. When one reads the document, one understands how an ordinarily simple judicial procedure had its end more than  one century after its beginning.

Key words

Civil process – inventary – law – Rio Grande do Sul

O processo de inventário do Comendador Domingos Faustino Correa é, com certeza, o feito que mais tempo demandou na Justiça do Rio Grande do Sul. O Comendador, no leito de morte, mandou redigir seu testamento em 11 de junho de 1873, vindo a falecer 18 dias após.  O inventário deu entrada em Juízo em 27 de junho de 1874. O processo tramitou em Juízo por 107 anos, gerando uma verdadeira corrida atrás do “ouro” deixado pelo inventariado. Ao longo desse tempo, milhares de “herdeiros” se habilitaram à herança, cuja meação do Comendador jamais foi partilhada aos supostos herdeiros.

A esposa do Comendador, Dona Leonor Maria Correa havia falecido no ano de l865 e também deixou lavrado seu testamento, datado de 04 de maio de 1850. Pode-se dizer que foi o testamento dela o embrião da celeuma criada em torno da fortuna do casal. Ao morrer, Dona Leonor, que não teve filhos, instituiu seu marido, o Comendador Domingos Faustino Correa, usufrutuário universal da meação de seus bens no espólio. Ao lavrar seu testamento, o Comendador nomeou dois inventariantes: um para o Império do Brasil, o Dr. Pio Angelo da Silva e outro para proceder ao inventário dos bens situados no Estado Oriental (Uruguai), Dom Carlos Regles. Há notícias, inclusive, de que lá também tramitou um feito de inventário tão complexo quanto o processo em tela.

Dentre as diversas questões que o assunto suscita, duas são sempre constantes. Por que as pessoas nunca receberam a herança? Por que o processo tramitou tanto tempo em juízo?

Diz-se que foi o testamento da esposa do Comendador o embrião de toda a demanda porque, ao deixar o marido como usufrutuário e inventariante de sua parte no espólio, Dona Leonor  possibilitou que ele, no seu testamento, repassasse o encargo para o seu futuro  inventariante, Dr. Pio Angelo da Silva. Assim agindo, o Comendador despertou o descontentamento dos irmãos de Dona Leonor, aqueles a quem ela havia instituído como seus herdeiros no testamento. Embora ela tivesse vários irmãos, deixou claro que só três deles receberiam a herança, pois os outros eram abastados em bens. Seus herdeiros foram: Evaristo, Francisco e Joaquim Correa Mirapalheta.

Como se pode observar nos autos, Dona Leonor elaborou um testamento simples e claro. Nas suas disposições testamentárias, observa-se uma grande preocupação e filantropia com a orla doméstica e parentela. Beneficia a criadagem, alforria os escravos, deixa dote a sobrinhas, afiliadas e afiliados.  Deixa uma grande soma para os “seus enjeitados”, seus filhos de criação, para obras pias da Igreja, à Santa Casa de Misericórdia. Demonstra uma enorme preocupação com o tratamento que os  escravos deveriam ter, após a sua morte,  para com seu  “prezado esposo”. Ela declara livres todos os escravos, com a ressalva de servirem ao Comendador enquanto ele viver. Por último, tece agradecimentos aos escravos que ajudaram o casal a adquirir a fortuna. No final, realizados todos os seus desejos, o que sobrasse de sua parte na herança caberia, então, a seus três irmãos: Evaristo, Francisco e Joaquim Correa Mirapalheta, ou aos descendentes destes.

Já o testamento do Comendador, embora tenha, também, um perfil filantrópico, é bem mais caprichoso no que se refere aos legados. Com exceção de uma légua e meia de campo que deixa às crias (filhos dele com as escravas), o Comendador distribuiu sua fortuna para amigos, cuja classe social difere bem do rol daqueles beneficiados por sua esposa. Eram eles: seu médico, Dr. Pio Angelo da Silva, que também instituiu seu inventariante e testamenteiro; a viúva e filhas solteiras do ex-escrivão Luis Joaquim de Carvalho; o compadre e amigo Manoel Moreira Calçada; a viúva do  amigo e compadre, Doutor João Batista de Figueredo Mascarenhas; a sobrinha “aleijada” e o sobrinho José Dias de Oliveira, dentre outros.

No testamento, as preocupações do Comendador também são diferentes daquelas de sua esposa. Dispõe sobre o imposto do usufruto da sua herança, sobre o valor, condições e prazo de vencimento das propriedades que ficaram arrendadas, sobre a administração dos bens que ficariam às “crias” e até sobre eventuais legados que deveriam, após sua morte, serem adquiridos pelo inventariante e repassados para seus amigos. Sobre suas dívidas, e da mesma forma que Dona Leonor, deixa uma grande quantia às obras pias da Igreja e às ordens religiosas às quais pertencia.

Caprichoso nas disposições e rico na imaginação foi o Comendador Domingos Faustino Corrêa ao lavrar seu testamento. Um verdadeiro labirinto de idéias. Disposições quase impossíveis de serem cumpridas. Por exemplo:

“declaro, por último, para evitar dúvidas futuras, que a administração dos bens legados (legados às crias) durará até a extinção da quarta geração dos legatários, isto é, os bisnetos, quando cessará o usufructo do campo dos Canudos e se devolverá a meus herdeiros ou legitimos sucessores”. 

Os bens deixados para “as crias” seriam administrados até a geração dos bisnetos destas e depois passariam, então, para os herdeiros legítimos, ou seja, talvez, para os bisnetos dos filhos do Comendador. Outra disposição caprichosa foi esta:

“deixo a meu compadre e amigo Manoel Moreira Calçada o usufructo por vinte e cinco anos de meia légua de campo no lugar (...). Por morte de meu compadre Calçada o usufructo passará com o mesmo encargo, pelo tempo que faltar a seus herdeiros. Findo o prazo do usufructo gratuíto, continuará meu compadre ou seus herdeiros por outro tanto tempo de vinte e cinco anos pagando a meus herdeiros tres contos de réis por ano e concluido o prazo passará a propriedade livre para meu compadre e seus herdeiros”.

Tudo isso, em 50 anos, meio século, como se nada pudesse ser alterado, como se as leis vigentes à época do Império não fossem mudar.

A primeira contestação que se verifica nos autos, quatro anos após ter dado entrada em juízo o inventário, é a petição inicial do então inventariante, Dr. Pio Angelo da Silva. Nela, os três herdeiros de Dona Leonor requerem a imediata separação dos bens, pelo fato de não ser o Dr. Pio inventariante daquela meação. A falecida não o havia instituído no cargo. Convém dizer que, no testamento do Comendador, não há qualquer menção a que os bens deveriam ser inventariados separadamente. Foi deferida, pelo juízo, a separação do monte-mor e se seguiram novas apelações dos herdeiros descontentes, sempre requerendo fosse-lhes concedida à justiça de uma divisão igualitária, indo o feito assim, num verdadeiro bate e rebate, até o acórdão datado de 01 de agosto 1893, no qual consta a assinatura do então Desembargador Borges de Medeiros que, junto com os demais julgadores, não poupou palavras para considerar inadmissível que, por mais de 10 anos, o inventário estivesse tramitando sem uma decisão final, pois já houvera acórdão anterior, datado de 16 de agosto de 1881, cuja decisão não fora cumprida na origem.

Primeiramente houve a separação da meação de Dona Leonor, procedendo-se à partilha de seus bens com pagamento dos legados, nos termos do testamento. A partilha foi homologada por sentença em 10 de outubro de 1877, que transitou em julgado. A partilha dos bens do Comendador foi homologada por sentença em 11 de outubro de 1880. Desta sentença apelaram onze herdeiros e a Fazenda Provincial. Foi a partir daí que se abriu o leque de inconformidades com a partilha da meação do Comendador. Em 16 de agosto de 1881, a partilha foi anulada, determinando a Superior Instância que se procedesse à nova partilha. Os embargos opostos ao acórdão que anulou a partilha foram rejeitados. A nova partilha somente deu-se em 19 de dezembro de 1891. Homologada por sentença, houve embargos acolhidos e julgados, anulando a sentença da nova partilha. Inconformados apelaram o inventariante e a Fazenda do Estado.

Assim, o acórdão datado de 01 de agosto 1893, se apresenta como uma verdadeira palavra de ordem a ser cumprida, na Comarca do Rio Grande:

“mandam, portanto sejam os herdeiros imediatamente empossados de seus quinhões e satisfeita a divida à Fazenda do Estado, que os bens no valor de  oitenta e cinco contos e seiscentos mil réis  ilegalmente dados em pagamento ao Doutor Pio Angelo da Silva seja sobrepartilhado entre os herdeiros devendo os juizes executores desta decisão não tolerar demora alguma: que além dessa nova partilha seja chamado o ex-inventariante e testamenteiro, Dr. Pio Angelo da Silva a prestar minuciosas contas de sua gestão dos bens.”     

A Fazenda Pública, para haver o pagamento do imposto de transmissão que lhe era devido, ajuizou processo de execução, levando vários bens à hasta pública.

Em 26 de março de 1903, invocando a condição de cessionário da Fazenda Pública, o Doutor Francisco Antunes Maciel ingressa nos autos com pedido de sobrepartilha dos bens deixados às crias, alegando não serem aqueles “bens  encapelados”, e também o imposto devido pelo usufruto de 25 anos  deixado ao amigo Manoel Moreira Calçada. Esta petição é rica em citações do Direito europeu, Direito americano, Direito da América Latina, resoluções régias e das Ordenações Manoelinas, Afonsinas e Filipinas.

Essa petição, juntada à fl. 2.272 dos autos, datada de 26 de março de 1903, quando teve resultado? Em 09 de novembro de 1907, na origem, e é claro, com posterior recurso ao Tribunal de Justiça, cuja decisão final saiu no ano de 1916.

Verifica-se aqui um lapso de quatro anos, sete meses e treze dias (decisão no 1º Grau), ou seja, este o prazo para a decisão sobre o usufruto de 25 anos, que foi extinto, pelo então Juiz Joaquim Américo Almeida Pereira e, posteriormente, confirmado pelo TJ.

Hoje, mesmo com um incomparável número de feitos que tramitam em juízo, é impossível admitir essa possibilidade, um período tão longo para uma decisão judicial. No entanto, à época, contando com a inexistência da tecnologia que hoje se dispõe (o primeiro carimbo que se observa nos autos é do ano de 1932 e as primeiras manifestações datilografadas são a partir de l920), a carência dos meios de comunicação (um precário e oneroso sistema de transportes), havia outro fator que se entende ser determinante na forma lenta como o processo tramitava: Executivo, Judiciário e Legislativo se confundiam na administração do Estado.

Dessa forma, para responder por que tanta demora no deslinde do feito, é preciso dividir o processo em duas fases de tramitação: a fase em que a Justiça estava atrelada ao arbítrio dos governantes e em que já havia um enorme número de herdeiros arrolados na petição inicial, pois além dos três irmãos de Dona Leonor Maria havia os descendentes de onze irmãos do Comendador, ou seja, por cabeça, quatorze pessoas litigando. Tudo isso associado à demora relativa aos prazos, que a lei a todos concede.

A outra fase é a da década de 1970, quando, por meio de rescisória, o processo foi novamente reaberto e se possibilitou uma avalanche de petições. Até hoje, contadas 50 das 483 caixas, obteve-se um total de 1.952 petições e 6.336 “habilitados”, em um período médio de seis meses. Quanto ao número de apelações, embargos e recursos, o que se pode dizer é que, até a fase atual da pesquisa elaborada, ainda não foi possível chegar a uma quantificação precisa, em face do enorme volume do processo. Certo é que vieram petições de todas as partes do mundo para habilitação à herança; do universo de 6.336 habilitados, somente dois a inventariante considerou herdeiros do Comendador.

Quanto à avalanche de petições, ocorrida na década de 1970, uma verdadeira corrida ilusória atrás da fortuna do Comendador, constata-se que teve início em 1966 com a morte do inventariante José Joaquim de Oliveira Cardoso, cuja notícia só veio aos autos dois anos depois. A inventariante que o substituiu e, também, a última que atuou no feito habilitou-se em 1968, só peticionando nos autos em 1972.

A partir daí, com a petição da última inventariante, na qual constava um fantasioso rol de 109 bens imóveis de propriedade do Comendador, começou toda a propaganda em torno da suposta “herança”, noticiada na imprensa do mundo inteiro como “ouro caído do céu” ou a “herança do século”. A fantasia desse novo rol de bens demandou uma exaustiva pesquisa em Cartórios de Registros de Imóveis, no Arquivo Público e no INCRA e só teve fim com uma nova palavra de ordem do Tribunal de Justiça, arquivando definitivamente o processo em 1984. 

Quanto à questão da notícia corrente de que ninguém nada recebeu, não é verdade. No início do processo, os herdeiros de Dona Leonor Maria Correa receberam sua parte na herança, como se vê, claramente, pelas prestações de contas do testamenteiro, à época. Esses comprovantes demandam volumosa documentação nos autos, tudo devidamente registrado.

Foi a meação do Comendador que gerou toda a celeuma, e por duas razões: pelo quase imensurável rol de habilitados e pelas disposições caprichosas do testador que possibilitavam sempre aos advogados novos argumentos às decisões judiciais; e a modernização da Justiça gaúcha associada às mudanças no Direito das pessoas e das coisas possibilitou se arrastasse o litígio por mais de um século, garantindo, por exemplo, aos usufrutuários das terras do Comendador o direito de peticionar e obter a usucapião.

Pode-se, então, afirmar que no lugar do breve tempo esperado para a decisão judicial do processo, veio a estruturação do Estado, trazendo em seu bojo, várias mudanças, como a do Código Civil, só promulgado em 1916, e a do Direito para todas as pessoas no lugar da herança para os herdeiros. Enfim, encarregou-se o tempo de satisfazer as caprichosas disposições do testador. No lugar da herança aos herdeiros, partilhável e perecível, um bem intangível à sociedade em geral: a história do processo de inventário do Comendador Domingos Faustino Correa.
 

Fonte: Site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - www.tj.rs.gov.br/institu/memorial/o_processo.doc

 

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